segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Chaleirando o empresariado-bandido

A gente sabe que ‘neutralidade’ é coisa de pH, de sabão e olha lá. Mas vez-em-quando uma objetividade básica já daria bons resultado. Só que o povo erra a mão tão feio que deixa exposta uma adulação marota, certa deferência com toques de respeito, ou seja, a popular pagação de pau. Não acontece só com familiares, vizinhança e colegas reaças, mas vinga com gosto nas melhores famílias proprietárias de meios de comunicação (quem diria, não é mesmo?). 

Uma dessas pagações nacionais mais entusiastas é aquela dirigida ao ‘empresariado’ – conceito que abarca muita coisa e funciona praticamente como atestado de caráter. Por aqui, criatura associada ao ramo empresarial merece, automaticamente, loas e inclinações de espinha dorsal (os MEIs terão um episódio próprio, com apresentação de coachs e shows de subcelebridades).

Daí que não tem muita surpresa quando lemos títulos assim, nesses termos:

 
E mesmo quando puxam a capivara do assassino, paira aquele aplauso respeitoso, visível na escolha das informações divulgadas:


Serião isso? “Aieeem, mas tem que listar todas as características” – dirá quem vê defesa de direitos-humanos-comunistas-feministas-gayzistas quando se apresentam as credenciais de líderes comunitárias, trabalhadores, pessoas negras, políticas de partidos de esquerda ou adolescentes estudantes vítimas da polícia; aí sobra certeza de que foi bala perdida, que é necessário ver os dois lados, que não se enalteça bandidagem, pois periferia é criminosa e por aí vai o chorume nacional.

Mas não bastasse o deslumbre por bairro nobre e empresário dono de laboratório, o desenvolvimento da matéria em questão praticamente entrega um merchandising:



Melhor que isso, só as informações indispensáveis a respeito de carros de luxo circulando na temporada em Florianópolis ou de enfeites natalinos em mansão de boleiro presunçoso e endinheirado. Pulitzer aqui, por favor!
 
 
 FONTE: g1
 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Dos filtros

Isabella de’ Medici foi uma florentina ricaça, gastona e ousada que viveu no século 16. Como quase todos e todas de sua família, ela teve seu retrato pintado em seus dias de glória.

No século 19 a pintura ‘sofreu’ um restauro bem ao estilo da época, quando carcavam a mão sem dó... Por mais de 200 anos, a imagem da princesa de’ Medici era uma interpretação bem particular da restauração. O rosto foi modificado e a mão diminuída, entre outras coisas, para que correspondesse a um ideal de beleza específico dos oitocentos.

O retrato foi adquirido pelo Carnegie Museum of Art (Pittsburgh). Ali, a curadora Louise Lippincot e Ellen Baxter, conservadora-restauradora da instituição bateram o olho e entenderam que o restauro típico do 19 havia modificado a obra original. Após raios-X que confirmaram a hipótese e uma limpeza’ profissional que removeu as intervenções anteriores, a imagem que se imagina ser a original apareceu. Os dois retratos são bem diferentes: à esquerda, o quadro ‘restaurado’ no século 19; à direita, o retrato após a restauração atual, que eliminou camadas de interferências, tintas e vernizes de outras épocas e a própria ação do tempo.

 

É claro que não foi a primeira obra a passar por esse processo; com os recursos atuais, profissionais da restauração têm se empenhado para recuperar imagens ocultas sob estratos, resíduos e escolhas de outros tempos – atividade extremamente cara, à disposição de poucas pessoas e instituições.

Isso me faz matutar sobre coisas como a intervenção de Cecilia Gimenez (2012) no Ecce Homo em Borja, na Espanha; nos retoques das fotopinturas e das fotos da imprensa há um século; nos cartões postais com fotos coloridas à mão, filmes colorizados e tingidos também à mão etc. etc. etc., até photoshop e atuais filtros de imagem. E assim como quadros, fotos ou filmes, tudo tem suas camadas de filtros – escolhas, possibilidades econômicas e técnicas, visões de mundo, verdades de determinada época... 

Fugindo das arapucas dos relativismos e também daquele positivismo maroto que caça a “verdade objetiva e única”, é importante a consciência a respeito desses filtros, saber que existem, que pessoas os escolheram (às vezes sem se darem conta totalmente), que há mediações entre nossos olhos e o que se apresenta diante deles.

Isso é só um exemplinho capenga, um protótipo de discussão feitincasa, já que a prosa vai longe e não faz unanimidade (mesmo porque, no meu tempo, com filtro ou sem era coisa de fumante). Mas fico assaz e deveras quando escuto muitas loas a produções passadas “menos artificiais”, “mais raiz”, com “verdades mais sólidas”, estruturas “mais verdadeiras”. Sei não...



quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Dotôras & dotôres do Brasil

 Garantindo com honras a preservação do espírito colonial


E ao fundo, em coro, mãos para cima, classe média teima: “mas eles/elas estudaram muito para chegar onde chegaram...”