Aberta a temporada do “você, mulher...”, “parabéns pelo seu
dia” e patacoadas no estilo, além dos indefectíveis descontos no workshop de pão
de queijo (para transformar o lanche em família numa festa), na limpeza de pele (para ressaltar ainda mais
a sua beleza) e nas seleções de bolsas e sapatos de salto gentilmente
organizadas por marcas que sabem que tudo o que você, mulher, precisa é valorizar
a autoestima.
Assunto novo isso não é, mas precisa continuar sendo
martelado na medida em que uma data para ressaltar a luta por direitos e
trazer à luz combates históricos continua sendo apropriada pelo comércio e
esvaziada de seus sentidos políticos, sociais. Já ouvi vááárias vezes o quanto isso é coisa
de recalcada-feminazi-solteirona-feia-invejosa [
ACRESCENTE AQUI A QUALIFICAÇÂO MACHISTA DE SUA PREFERÊNCIA] afinal, estão nos fazendo uma gentileza! Aqui e
ali, nos dão parabéns, oras! Levanta a mão quem já teve a própria beijada pelo colega
que faz mesuras de cavalheiro, para intensificar a
homenági. O post brilhando com
rosas de
glitter já pipoca cedo, junto com poemas duvidosos falsamente
atribuídos a Drummond, Quintana ou qualquer outro que atenda pela pecha de
poeta (porque mulher e poesia combina que é uma beleza, vocês sabem). E, claro,
declarações de mulheres sobraçando um cento de rosas vermelhas dizendo que é
feminina e não feminista e que gosta sim, de ganhar flores.
Daí a gente explica pela giganésima vez que não há problema algum
em usar salto, gostar de flor, batom, receitas, costura, bdsm, seja lá o que for, desde que seja
escolha.
O problema é apagar debates necessários e urgentes esvaziando-os do seu sentido
original e reduzindo-os a
imagens inócuas, infantilizadas e altamente comerciais como dia das
crianças, por exemplo.
Então, buscando recuperar o sentido que teimam em querer
extinguir ou simplesmente negar, dia 8/3 é um marco, uma lembrança
internacional sobre a necessidade de paridade, de garantias, de proteção
social, de leis, de punições a quem as descumpre; é sobre a necessidade de se
retirar o debate religioso das políticas públicas voltadas às mulheres, de se
retirar a aura de amor romântico das possessividades violentas, dos crimes; de parar de culpar mulheres (héteros, lésbicas, cis, trans) pelas violências a que
são submetidas.
Mas enquanto a gente puxa de um lado para que essas questões
ocupem o “horário nobre” do debate, tem quem puxe a outra ponta sublinhando
nossa chatice, falta de sensibilidade e a mania de ver tudo pelo lado negativo
(levanta a mão também quem já ouviu dessas). Piooooor, o colega
disquerda que insiste na ladainha de que essa discussão é
pauta identitária destruindo a esquerda e a maria-mole rosa (com pitadas de “até pegaria feminista, mas só tem feia” ou “mulheres não valorizam homens sensíveis e inteligentes” – levanta a mão...).
Bonus track da passação de vergonha machista: profe
universitário revirando os olhos, “agora não dá mais pra fazer uma gentileza a uma mulher,
que a gente já leva um coice”. Claro, professor, nossa tarefa é ficar à
espreita de um homem gentil para humilhá-lo publicamente, aos gritos loucos, de
preferência atirando nele coletores menstruais – sim, essa imagem e similares
são mais do que evocadas nesses idos de março, começando por tias deste Trator que aqui escreve.
Manual de instruções: presente, todo mundo adora receber.
Não precisa de data, mas corresponder ao gosto da pessoa em questão, certo? Quanto
à gentileza, digamos que é condição sine qua non para a interação humana de
quem já desceu da árvore e se equilibrou sobre duas patas, assim como defender políticas públicas de qualidade e justiça social. É básico. Agora, arremedo de poema ruim com flores e corações ninguém merece. Por favor.