sábado, 27 de julho de 2019

Atrofiar o mundo, impedir horizontes em expansão

Em 1995 estreou Underground – Mentiras de Guerra, de Emir Kusturica. Naquele momento, a Iugoslávia acabava de desaparecer como país, depois de uma guerra civil que durou 3 anos. No filme, acompanhamos a história da região, desde a Segunda Guerra até o fim do século XX, a partir de 3 personagens centrais – Marko, Petar e Natalija.

Durante a ocupação nazista do país, Marko e Petar são boêmios, trapaceiros e resistentes. Natalija é atriz, oportunista, próxima de quem estiver no poder no momento. Marko quase morre ao ser capturado pelos nazistas, mas é salvo por Petar e Natalija, que o escondem numa espécie de porão, juntamente com outros resistentes. Nesse esconderijo, fabricam armas que são levadas à superfície para combater os alemães. O único contato que esses clandestinos têm com o mundo exterior é por meio de Petar, que lhes traz notícias, rações de comida, objetos, tudo o que possa deixar a vida no porão um pouco menos precária. Bem pouco.

A guerra termina, os nazistas são vencidos, o líder resistente Josip Tito passa a presidir a Iugoslávia, Petar se torna um de seus assessores mais próximos e se casa com Natalija. Mas Petar não avisa Marko e o grupo que vive no porão sobre o fim da guerra. Estes continuam a acreditar que vivem sob a ocupação nazista e a produzir armas, mesmo 20 anos após o fim da Segunda Guerra. Petar mente, mantendo-os com medo, narrando falsas histórias de luta do lado de fora e frisando que os resistentes na superfície precisam daquelas armas. Explica que o esforço de guerra é mais necessário que nunca.

Quanto às armas produzidas no subterrâneo, Petar as trafica, ganhando muito dinheiro com a atividade ilegal. Ele é tido como um herói de guerra pelo governo iugoslavo. Criou uma mitologia sobre sua participação heroica contra os nazistas, que nunca existiu, e sobre a morte de Marko, tido como mártir, com direito a estátuas suas por todo o país. Ninguém sabe que Marko está vivo, mantido por Petar no porão. Vivendo em acima deste, Petar fabrica uma realidade de guerra, com direito a sirenes, ruídos de bombardeio, tudo o que possa manter as pessoas com medo de sair.

Uma geração nasceu e se tornou adulta naquele subsolo; outra se desenvolve, na figura de crianças que jogam bola e correm por todos os cantos do porão, único mundo que conhecem. Todos têm um objetivo apenas na vida, que é fabricar armas para derrotar os nazistas. Suas perspectivas, sonhos e raciocínio são atrofiados, precários. Mas têm a certeza de fazer o que é certo, necessário. Vivem assim até a década de 1990, quando saem e constatam a mentira de décadas, confrontando o mundo da superfície. Imperdível.

A imagem das pessoas mantidas no subterrâneo, uma caverna de Platão no século XX, é genial no filme de Kusturica. Penso muito nela atualmente, 24 anos depois de ter visto o filme pela primeira vez. Tenho a sensação de viver rodeada por grupos que viveram em diferentes subterrâneos da nossa república nacional. Mas que uma vez na superfície, continuaram a viver e a reproduzir as verdades subterrâneas. Os horizontes e o raciocínio não se expandiram, mesmo em campo aberto. É como se seus cérebros tivessem se retraído definitivamente, incapacitados para avançar, questionar, ir além.

Por algum tempo, esses viventes eram folclóricos. Incomodavam, mas eram obrigados a se ajustar às regras da superfície, mesmo que sua atividade mental não as abarcasse completamente, mesmo que ainda vissem com escândalo o que ia pelo mundo. Mas uniram forças, se organizaram. Hoje lutam para encurtar horizontes, atrofiar o mundo real para que se ajuste a suas verdades paupérrimas. Tudo o que seja maior e vá além, deve ser implodido.

A república brasileira manteve muitos subterrâneos em diferentes épocas, sempre reforçando em todos uma narrativa centrada na “família”, no moralismo, no combate a um comunismo que já mudou de cara algumas vezes e já não se sabe exatamente o que é, na patriotada, na desconfiança ao que recenda a trabalho intelectual, científico e no entendimento da diferença como ameaça.

Força para suprimir contradições. Aposta no conflito. Isso gera medo. Traz recolhimento aos porões mentais.

Ao contrário do que ocorre no filme de Kusturica, aqui, as pessoas saídas do subsolo não querem vivenciar um mundo real, em transformação. Querem reduzi-lo às poucas coisas que conhecem, aos parcos valores nos quais acreditam. Pior, hoje estão fazendo leis, legislando e julgando esse mundo real. O objetivo único é enterrá-lo, é tragar as pessoas para baixo, é reduzir a vida. Enquanto isso, traficantes de toda a ordem rolam sobre ouro, togas e poder, sequestrando o que é público e elevando a estupidez a efígie nacional.