sábado, 27 de novembro de 2021

A infância arruinada pelos desenhos animados

Em tempos de recusa a ciência, educação, civilidade e inteligência de forma geral, é infalível a menção aos “velhos tempos” e ao “quando eu era jovem”. Um tempo muito idílico, todo trabalhado no respeito aos valores (nunca muito precisos), no patriotismo (marcha soldado, cabeça de papel), numa pretensa simplicidade da vida (no retrovisor, todo passado parece simples) e numa inocência que estaria refletida em programinhas neutros, desenhos animados bacanildos e maria-mole rosa na casquinha de sorvete. 
 
Não tenho as mesmas lembranças, e muitas delas trazem imagens perturbadoras até, saídas dos lugares mais improváveis, como os tais desenhos animados divertidos e gracinha, à disposição em vários canais, a tarde toda. Havia os da HB (Hanna-Barbera, que eu achava que era o nome de uma mulher), os mais hollywoodianos, os mais disney, os mais americanófilos e por aí vai; mas tinha uma série deles mais existencialistas, digamos assim, filosóficos, como os da UPA (que já apareceram aqui anos atrás). Além desses, rolava uma bizarrice braba, coisa que (de)forma o caráter da criança pra vida, como os desenhos do Famous Studio / Harveytoons, divisão de animação da Paramount entre os anos 1950 e 60. 
 
Um deles, de 1958 (mas que frequentava as TVs brasileiras no fim dos 70), chamava-se The sad story of Finnegan's Flea (A triste história da pulga de Finnegan, aí no final da postagem). Resenha rápida: sujeito entra num bar, vê um tipo meio esverdeado, olhos vidrados, sem se mexer. O barman conta que se trata de Finnegan, que tinha puxado 20 anos em Alcatraz e lá descobriu uma pulga cantora, que o acompanhou quando saiu da prisão – lembra um desenho do Chuck Jones, no qual um sujeito encontra um sapo cantor, mas o da pulga é sombrio, funéreo. Enfim... vemos o Finnegan em Alcatraz, tirando um som das articulações dos dedos que ele estala, quando a pulga começa a cantar. Ele acredita que a voz seja do fantasma de Novak, colega preso que morreu na cadeira elétrica (fofo, né?), até que descobre a pulga cantora, Charlie. Finnegan sai da prisão, a pulga junto. Ele tenta conseguir uma grana jogando sinuca, mas está fora de forma. Dorme num albergue ferrado, onde descobre que a TV procura novas atrações. Ele leva Charlie aos executivos da rede, que oferecem um contrato, tudo joia. Finnegan felizão decide comemorar, entra num bar, pede champagne. O barman dá uma sacada no jeitão miserê do Finnegan e quer saber dondié que vai sair dinheiro pra pagar essa cana. Nosso amigo ferrado bota o Charlie sobre o balcão e diz: “Está vendo esta pulga?”. Todo trabalhado no higienismo e na insetofobia, o barman dá um tapão no balcão, mão aberta, força total. A pulga Charlie passa para o outro plano, a pobre. E Finnegan, chocado, congela naquela posição, os olhos arregalados, olhar vazio, a boca aberta. Faz 13 anos que ele está assim, e o barman o alimenta com pretzels e cerveja. O argumento final do barman, depois de se culpar um pouco, é que ao menos o Finnegan não tem mais que preocupar com o estômago vazio. E é isso.
 
Agora me digam que criança fica de boas com essa história? A gente carrega isso vida afora, herança recebida dos anos 50 (e uma visão bem peculiar de divertimento infantil) numa TV dos anos 70, pacotão de abril, Ernesto Geisel, educação moral e cívica e o escambau. Personalidade arruinada pra sempre.
 
Mas tenho desconfiado que uma moçada da minha faixa etária (meio século em diante) não assistiu a esses desenhos. Mudou de canal e ficou vendo o Capitão América. E aí o estrago foi maior, né, pois hoje estão votando em miliciano, bradando trabalho-pátria-família, pedindo a volta da milicada, o dia da consciência branca, a parada do orgulho hétero e o direito a uma dose de ozônio. 
 
Então, crianças, quando ouvirem falar de um tempo-em-quê, desconfiem. Perguntem sobre as preferências televisivas e não descartem o bizarro como necessariamente ruim...

The Sad Story of Finnegan's Flea (Harveytoons / Paramount, 1958)