segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Dos filtros

Isabella de’ Medici foi uma florentina ricaça, gastona e ousada que viveu no século 16. Como quase todos e todas de sua família, ela teve seu retrato pintado em seus dias de glória.

No século 19 a pintura ‘sofreu’ um restauro bem ao estilo da época, quando carcavam a mão sem dó... Por mais de 200 anos, a imagem da princesa de’ Medici era uma interpretação bem particular da restauração. O rosto foi modificado e a mão diminuída, entre outras coisas, para que correspondesse a um ideal de beleza específico dos oitocentos.

O retrato foi adquirido pelo Carnegie Museum of Art (Pittsburgh). Ali, a curadora Louise Lippincot e Ellen Baxter, conservadora-restauradora da instituição bateram o olho e entenderam que o restauro típico do 19 havia modificado a obra original. Após raios-X que confirmaram a hipótese e uma limpeza’ profissional que removeu as intervenções anteriores, a imagem que se imagina ser a original apareceu. Os dois retratos são bem diferentes: à esquerda, o quadro ‘restaurado’ no século 19; à direita, o retrato após a restauração atual, que eliminou camadas de interferências, tintas e vernizes de outras épocas e a própria ação do tempo.

 

É claro que não foi a primeira obra a passar por esse processo; com os recursos atuais, profissionais da restauração têm se empenhado para recuperar imagens ocultas sob estratos, resíduos e escolhas de outros tempos – atividade extremamente cara, à disposição de poucas pessoas e instituições.

Isso me faz matutar sobre coisas como a intervenção de Cecilia Gimenez (2012) no Ecce Homo em Borja, na Espanha; nos retoques das fotopinturas e das fotos da imprensa há um século; nos cartões postais com fotos coloridas à mão, filmes colorizados e tingidos também à mão etc. etc. etc., até photoshop e atuais filtros de imagem. E assim como quadros, fotos ou filmes, tudo tem suas camadas de filtros – escolhas, possibilidades econômicas e técnicas, visões de mundo, verdades de determinada época... 

Fugindo das arapucas dos relativismos e também daquele positivismo maroto que caça a “verdade objetiva e única”, é importante a consciência a respeito desses filtros, saber que existem, que pessoas os escolheram (às vezes sem se darem conta totalmente), que há mediações entre nossos olhos e o que se apresenta diante deles.

Isso é só um exemplinho capenga, um protótipo de discussão feitincasa, já que a prosa vai longe e não faz unanimidade (mesmo porque, no meu tempo, com filtro ou sem era coisa de fumante). Mas fico assaz e deveras quando escuto muitas loas a produções passadas “menos artificiais”, “mais raiz”, com “verdades mais sólidas”, estruturas “mais verdadeiras”. Sei não...