sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Por que motivo você é Charlie?




“Na privada, todas as religiões!”
(CH, 2011)


Fico espiando do canto, aqui deste Trator, análises que se multiplicam nas quebradas virtuais, tentando dar conta do que aconteceu em Paris no dia 7. Muitos comentários, compartilhamentos, joinhas, curtidas e afins.

Sobre o fato em si, não tem muito que analisar: assassinato, brutalidade pura, obscurantismo, ignorância, terror como instrumento. Não há justificativa que se aceite. Mas aí, há as outras camadas de reflexões, apoios, alinhamentos; todas fazendo com que o fato – o massacre na redação do Charlie Hebdo – seja esticado para lados diferentes, por quem busca apresentar respostas definitivas, relações nunca dantes imaginadas, sacadas geniais (que, claro, impressionarão audiências no fêici). 

E nesse movimento de esticar e deformar um fato para que caiba nas próprias convicções de quem o analisa, a máxima “não existe a verdade histórica, mas interpretações” é levada até limites esquisitos, beirando mesmo a incompetência profissional (pra não dizer má-fé). Tenho lido textos em sites de “pensadores”, esbarrando em comentários do povo todo trabalhado nas humanidades e ciências sociais – exatamente como eu (obviamente que não gasto preciosos minutos a me informar sobre o que acham sherazades, reynaldos, diogos, vejas e demais perdas de tempo na vida de quem produz sinapses regulares).

Então, em várias das reflexões apresentadas como mais elaboradas por viventes pensadores, tropeça-se em muita bobagem, daquelas produzidas para impressionar, pretendendo trazer à luz o detalhe que ninguém viu, a referência que ninguém tem. Tudo isso bem embebido nas próprias preferências do autor, políticas, artísticas, geográficas, o escambau. Para que o truque funcione, é necessário então moldar, deformar informações de modo que se harmonizem em uníssono, dando aquela sensação de sapato 33 em pé 36.

“Estupro: saiba se defender”
(CH, 1976)

Assim, há os defensores perpétuos de um “mundo muçulmano” homogêneo e totalmente imaginário, verdadeiros profissionais da desinformação, que não distinguem Arafat de Massoud, mas que veem uma luta linda e sem fim contra o ocidente, contra os estadunidenses (todos absolutamente iguais e FDPs, na sua visão). Defendem qualquer ato, palavra ou silêncio desse “mundo muçulmano” que aplainaram em suas ideias muito mais que os amigos verdadeiramente muçulmanos que tive (e que raciocinavam, bem entendido). Para estas figuras, todo o massacre é justificado por conta da opressão, e todo francês de origem árabe vive miserável, na periferia, sem eira nem beira (todos, sem exceção). Nunca ouvi muitas menções desses defensores perpétuos às mulheres nas piores regiões desse “mundo muçulmano”, mas já ouvi um deles justificar a lapidação como “costume”, prática cultural a ser respeitada. É claro que o Islã não é isso, só estúpidos imaginam que sim; mas se a criatura defensora perpétua, igualmente estúpida,  passa seu tempo a justificar esse tipo de prática, a única coisa que vem à luz é exatamente essa deturpação.

“Shoah Hebdo
Milagre em Auschwitz. 
O Talmud é mágico, transforma água em gaz e gaz em ouro.”
(CH, 2008)


Há também os tipos que enxergam a própria causa em tudo o que acontece pelo mundo, em qualquer época. Assim, tudo o que preconize liberdade, mencione justiça e questione instituições, só pode, não tem outro jeito, ser de esquerda. Da “minha esquerda”. Organizada em partido, semelhante em tudo ao “meu partido”. Mesmo que essa comparação não se sustente no mundo real. A pessoa precisa organizar os próprios referenciais, administrar as próprias crises, e nada como um fenômeno da proporção desse do dia 7 para ajudar a se equilibrar – claro, equilíbrio existente apenas na cabeça da criatura que faz essas associações, e que acaba se emaranhando em informações falsas, conclusões simplistas, observações tolas.

Digo tudo isso depois de ter lido sobre um suposto pertencimento à extrema-esquerda da redação do Charlie assassinada. Já começa mal o autor do artigo, primeiro porque anula individualidades de gerações e experiências diferentes. O grupo não era um bloco a se filiar à mesma ideia, mesmo que compartilhasse de princípios comuns, como a liberdade acima de tudo, a denúncia de seu cerceamento, a recusa da força bruta como instrumento político e o riso em todas as ocasiões. Mas não dá pra congelar a imagem de um jovem universitário de 1968 (um soixante-huitard) e transplantá-la para o século XXI, dando a entender que pessoas de 70 anos, com toda a experiência que já viveram, são exatamente iguais e mantêm exatamente as mesmas ideias de 45 anos atrás. Mais ainda, que uma geração subsequente, também na redação do periódico, siga exatamente os mesmos passos. E isso não é informação fechada à chave em algum arquivo de sacristia, basta conhecer um pouco da biografia dessas pessoas e, importante, basta ter lido o Charlie de diferentes épocas, para saber do que se trata. Assim, enquadrar a redação do periódico, inteira, como extrema-esquerda é, no mínimo, erro de informação.

“228 desaparecidos...
... 228 abstenções a mais nas eleições para o Parlamento Europeu!”
(CH, 2009 – queda do vôo 447 da Air France)


Se houve uma constante nas publicações e nas posturas dos redatores e desenhistas foi o humor, certamente, mas não qualquer humor. E aí, outro choque no debate ralo, entre os que destacam um suposto senso de humor puramente engajado versus os que denunciam uma suposta islamofobia. 

A derrisão de seus autores sempre teve passagem obrigatória pela política; pela laicidade; pelo iconoclasmo; pela falta de respeito ao que quer se apresentasse. Goste-se ou não. A provocação era o horizonte, e não faltaram processos ao periódico por ultrapassagens de limites considerados aceitáveis. Quedizê, não rolava um humor muito fino, muito nouvelle cuisine, a provocar risos blasés. Muitas das imagens e dos textos que as acompanham chegam ao limite do mau gosto, da grosseria, e são herdeiras de uma tradição de humor e imprensa francesas de mais de dois séculos. Isso era um instrumento poderoso para detonar certezas, provocar sem poupar ninguém. Sobrava pra todo mundo, e geralmente da pior forma...

“Junho de 1940:
Eram bons tempos”
(Hara-Kiri, 197?)


Li outro texto que lembrava as origens do Charlie no periódico Hara-Kiri (“jornal besta e malvado”, como se anunciava em sua capa). Os veteranos do Charlie lá estavam, e durante uma década produziram um periódico “anárquico”, com capas escatológicas que não deixavam dúvidas sobre o teor de seu conteúdo. Sim, esse era o humor 68, detonando a família, a política, a igreja, os costumes, tudo o que ainda recendesse ao início do século XX, tudo o que pudesse ser suspeito de tradição, pudor e discreção. Uma geração inteira aprendeu a rir e a questionar muitas coisas com a Hara-Kiri, depois com o Charlie Hebdo

Isso não quer dizer que havia um suposto refinamento de humor inteligentérrimo e cheio das referências literárias, como sugeriu a pessoa que escreveu o texto sobre a revista, citando algo como “humor sutil”. Oi?! Sutileza era o que mais faltava ali! Não significa, por outro lado, que seus autores fossem alienados, estúpidos, sem qualquer reflexão política, filosófica, artística, ao contrário – mas é o tipo de situação que incomoda quem não consegue ultrapassar os limites da própria experiência, que não consegue visualizar um mundo plural, cheio de arestas e coisas difíceis a explicar. 


“Um gesto digno da França:
Giscard [então presidente da república] adota uma ugandense.
– Votem no papai!”
(H-K, 1975)

Eu não tenho muita certeza de que quem se afirmou como sendo Charlie o faria se tivesse folheado as revistas. O que leva a outro ponto que incomoda, mais ou menos variação sobre o mesmo tema: e o medinho de aparentar defender algo diferente dos próprios referenciais só por ter condenado um assassinato? E o receio que dá descobrir que houve empatia e tristeza por pessoas que não tinham as mesmas referências, que talvez até pensassem de forma completamente diferente? Ah, não, né? Porque nesse tipo de (falta de) raciocínio, se você não abraça minha bandeira, minhas exatas referências, ações e filiações, dane-se. Busca-se transformar o mundo no cercadinho limitado onde se guardam algumas ideias – pior pro mundo se a maior parte da vida não couber ali.

Sei lá, no todo-dia, em situações críticas e próximas, tem quem não seja tão Charlie assim...

  
“Carta oficial de intelectual comunista,
concedida por Hara-Kiri ao camarada xxxx,
por ter respondido corretamente 'Moscou' no exame.

Esta carta autoriza seu portador a circular gratuitamente 
nos tanques russos de transporte público do povo.

O portador desta carta cumpriu satisfatoriamente o exame abaixo:
Encontre o nome da grande capital de um grande país socialista, 
completando, com letras, o espaço pontilhado”

(H-K, 1971)


Em tempo – uma frase que ouvi de uma professora de literatura, que parece tão óbvia, mas não é: cada um lê como consegue, não como quer...