❝Nos últimos dias, diversas tragédias assolaram o mundo. Aqueles que,
como nós, não vivenciaram os acontecimentos diretamente, tomaram
conhecimento deles a partir do recorte e da construção midiática dos
fatos: dos atentados em Paris, passando pelo crime ambiental em Minas
Gerais e a chacina em Fortaleza.
A história se repete: um desastre em algum lugar do mundo gera
manifestações de solidariedade, hashtags e avatares nas redes sociais.
De imediato, um grupo reage lembrando outros casos de atentados, mortos e
desabrigados em lugares em guerra, famílias vivendo em situações
insalubres.
Casos, às vezes, acontecidos em dias muito próximos. “Indignação
seletiva!” – acusam de um lado. “Minha indignação não é seletiva!” –
respondem de outro. “Somos todos (e todas) Paris, Síria, Mariana,
Fortaleza”. Não, não somos. Somos diversos, com diversas experiências e
bagagens afetivas e culturais, que influenciam na forma como reagimos a
cada tragédia. Parte significativa dessa bagagem, do conhecimento que
temos dos lugares, povos e tragédias vem de um lugar comum: os grandes
meios de comunicação.
Não se trata, aqui, de pesar qual fato é mais doloroso ou digno de
cobertura ou solidariedade. Todas as vidas ceifadas, assim como toda
destruição e violência deve nos indignar e atravessar profundamente,
inclusive aquelas que ganham, quando muito, um mínimo espaço nas páginas
policiais. Mas para compreender como a seleção dos acontecimentos, a
abordagem e a comoção gerada por eles são feitas, precisamos desnudar o
modus operandi dos meios de comunicação. E perceber que não é difícil
concluir que a violência já começa na invisibilidade imposta aos que não
são considerados relevantes.
A decisão do que é e do que não é notícia, além de que notícia é mais
importante que outra, é baseada em diversos critérios, sistematizados
por diferentes autores, ensinados nas escolas de jornalismo e
incorporados ao cotidiano das redações. Apenas para usar como exemplo o
elenco mais conciso deles, dá-se mais relevância aos acontecimentos de
acordo com: novidade, proximidade geográfica, proeminência e
negativismo.
Ou seja, o que acontece hoje é uma notícia mais importante do que o
que se passou anteontem; um jornal do Ceará colocará em destaque
notícias da periferia de Fortaleza, não de Paris; porém, caso morra um
camelô na feira da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, ou a
apresentadora Angélica sofra um acidente, O Globo dará a manchete para
ela; uma má notícia ganha mais destaque que um acontecimento positivo.
Esses critérios obviamente não são naturais. Foram pensados a partir
do que toca mais o público, sim, mas também estão fortemente ligados a
valores econômicos e culturais. A vida de um parisiense vale mais do que
a de um sírio? Pessoalmente podemos achar que não – e defendemos que
não. Para a imprensa brasileira tradicional, no entanto, a resposta é
sim.
Ao nos apresentar o mundo que nem sempre conhecemos de perto – ou,
mesmo quando o fazemos, estamos já atravessados por todas as informações
e imagens que nos chegaram de forma midiatizada –, a mídia também
colabora para que tenhamos mais familiaridade com certos povos e
lugares. Cenários que já vimos tanto no cinema e na televisão.
Na geografia dos afetos, o Rio de Janeiro é muito mais próximo de
Paris do que de Fortaleza. Além disso, o tipo de tragédia que assolou
Fortaleza na última semana, com a chacina de doze pessoas – em especial
jovens negros –, é a tragédia cotidiana nas periferias, morros e
favelas. O critério da novidade aí também se esvazia.
E o que é uma tragédia passa a ser banal, sem merecer qualquer
destaque. Até mesmo o lugar social dos envolvidos é usado para
justificar ou não suas mortes. Ter ou não passagem pela polícia
tornou-se, assim, uma das primeiras perguntas feitas e reportadas na
apuração dos assassinatos. Afinal, a tão propagada narrativa
policialesca tem fixado na sociedade que “bandido bom é bandido morto”.
Foi assim em Cabula, em Salvador, e tem sido assim agora, no Ceará.
Mas a própria lógica da noticiabilidade é subvertida quando segui-la
prejudica interesses políticos e econômicos dos veículos de comunicação.
O caso do rompimento da barragem do Rio Doce, obra da Samarco,
controlada pela Vale, em Mariana/MG, é emblemático. Novidade,
proximidade, proeminência, negatividade. São dezenas de mortos e
desabrigados, cidadãs e cidadãos sem água potável e um prejuízo humano e
ambiental cujas consequências afetarão por anos uma extensão
territorial significativa de nosso país.
O crime, no entanto, que tem responsáveis muito claros, vem sendo
reportado como desastre ambiental. Tampouco se discute a fundo a questão
das privatizações e da responsabilidade do poder público no
acompanhamento das ações das mineradoras.
A própria presidenta da República só foi à região, sobrevoando a área
de helicóptero, uma semana depois do rompimento da barragem. O fato de
nossa autoridade política não ter dado a devida importância ao
acontecimento em Minas sem dúvida contribui para o não-destaque nas
pautas dos telejornais e veículos impressos. Mas chamar a atenção de
autoridades e cobrar a responsabilização dos envolvidos também é papel
da imprensa, por meio da definição do que ganha e do que não ganha as
manchetes.
O que versões pouco críticas da teoria do jornalismo que ensina
tradicionais valores-notícia como fundamentais para que um fato ganhe
repercussão pública ignoram é o impacto dessa padronização. Ela faz com
que agora, em todos os portais noticiosos da grande imprensa, uma
narrativa (na qual estão incluídas motivações e supostas soluções para
os conflitos) muito semelhante seja distribuída para grande parte da
população. Isso nos impede de perceber também a perversidade dessa
construção, que escamoteia os interesses que rondam – e muitas vezes
determinam – aquilo que lemos, vemos ou escutamos por meio na mídia.
Por isso, em vez de apontarmos o dedo uns aos outros, principalmente
nas redes sociais, acusando-nos mutuamente de indignação seletiva, cabe
entender como é construída tal seleção no nosso próprio imaginário. Qual
o papel da mídia nesse processo, mesmo entre quem busca coberturas e
veículos alternativos ao mainstream.
Quais as consequências da grande concentração num setor que deveria
ser regido pela pluralidade e pela diversidade de ideias, como preza
qualquer boa democracia. E a quem serve a fragmentação da nossa
indignação, que tem como pano de fundo, por mais clichê que seja a
afirmação, um sistema mundial de opressões que pune e invisibiliza
“minorias” sociais do Ocidente ao Oriente, nas grandes cidades,
periferias, morros e favelas; no campo e nas reservas indígenas e
ambientais; na esquina da nossa casa.❞
* Mônica Mourão e Helena Martins são jornalistas e integrantes do Intervozes.