“Se alguém ainda tinha ilusões a respeito de o Brasil
continuar como uma república, esta semana serviu para dirimir as últimas
dúvidas. Ela termina com a reedição da antiga teoria medieval dos dois corpos
do rei.
Um dos maiores historiadores do século 20, Ernst Kantorowicz
ficou célebre por seus estudos sobre a especificidade da incorporação do poder
na Idade Média.
Suas formulações apontavam, presente tanto no direito quanto
nas representações políticas, para um duplo corpo do rei: o rei tem, ao mesmo
tempo, um corpo mortal, corruptível, e outro imortal, incorruptível, sublime,
que desconhece tempo.
Em algumas situações, lembrava Kantorowitz, chegou-se até a
usar o corpo sublime contra o corpo perecível, julgando o rei em nome do rei.
O que não sabíamos é que Renan Calheiros também tem dois
corpos. Um é réu em processo penal, por isso é corpo de suspeito de crime
grave, o que o coloca como incapaz de assumir a função máxima de presidente da
República. O outro é um corpo sublime, que não traz as máculas e as suspeitas
do primeiro corpo e que, por isso, pode ocupar a presidência do Senado
Enquanto não for chamado à função de substituto do
"presidente", Renan se apresenta à República com seu magnânimo corpo
sublime. Quando ele aparecer na linha de substituto, Renan voltará a existir em
seu vil corpo réu. O bom e probo Eduardo Cunha não foi contemplado com tamanha
escolástica. Uma pena.
Que uma aberração desta natureza possa ter sido gestada à
luz do dia não devia, no entanto, surpreender ninguém. Quem decidiu a
permanência de Renan Calheiros na presidência do senado não foi o STF, mas a
junta financeira que nos governa.
Renan é necessário para garantir a tramitação da PEC que
congela os gastos públicos por 20 anos, enquanto libera do congelamento os
bilhões pagos pelo governo federal com serviço e juros da dívida pública que
fazem do sistema financeiro brasileiro um dos mais rentáveis do mundo.
Essa PEC, que retira do Congresso a possibilidade de
realmente discutir o Orçamento, transformando-o assim em uma associação recreativa
quer irá nos animar com cenas de xingamento, soco e outros pastelões, faz do
Estado brasileiro um mero ente que visa capitalizar o dinheiro de rentistas
privados. Um Estado privado, não uma república.
Aqueles que vendem a ilusão de que tamanho desmonte do
serviço público brasileiro será o caminho triunfal para a saída da crise podem
se mirar nos exemplos de todos os outros países que aplicaram "políticas
de austeridade" (menos brutais que esta, diga-se de passagem).
Todos eles enfrentam processos de pauperização e
precarização que serviram de campo livre para a extrema-direita. Mas por que
você confiaria em "analistas" que são normalmente pagos de forma
régia por aqueles mais interessados no assalto?
Retirar Renan da presidência poderia significar paralisar
todo o botim resultante do saque do Estado brasileiro, por isso, ele fica.
O senhor Calheiros entrou na linha de tiro por querer
limitar o poder do Judiciário, que acredita governar o Brasil na ausência de
qualquer legitimidade substancial dos outros dois poderes.
Mas, bem, os juízes também precisam se submeter à junta
financeira. Eles aprenderam isso nesta semana. No entanto, eles podem ficar
tranquilos pois serão recompensados, já que o governo, enquanto se propõe a
destruir o que sobrava da previdência deste país, já ofereceu aumentos e outras
regalias para nosso bravo Judiciário. E, claro, ele também não esqueceu de não
incluir as valorosas Forças Armadas na reforma previdenciária. Nada estranho,
já que todos eles sempre viveram em outro país.
Enquanto isto, os brasileiros que lutam para não serem
espoliados de seus últimos direitos levam tiros de policiais que invadem
igrejas para combater o velho inimigo interno de sempre: o próprio povo
brasileiro. Enquanto eles lutam na linha de frente, a claque do domingo finge
lutar contra a corrupção, esquecendo de gritar o nome do único
"presidente" das últimas décadas a ser pego em flagrante de tráfico
de influência. Deve ter sido um lapso.”