segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Música francesa: travestis e imigrantes acusados de roubo

Vez ou outra, ainda ouço suspiros e vejo as reviradas de olhos de algumas pessoas quando o assunto é “cultura francesa”, seja lá o que isso possa definir. Parece que a expressão desperta imagens cinematográficas, a promessa de gostos inacreditáveis no paladar, capazes de mudar o próprio rumo da vida, roupas trabalhadas em nomes etéreos (e nas máquinas de costura chinesas e paquistanesas) e músicas que falam de sentimentos profundos, só existentes em solo gaulês. Tá certo, a gente tem estereótipos sobre todos os lugares do planeta, mas esse especificamente, eu conheço mais de perto, na lupa.

Lembro de um profe que parecia ter cãibras na língua para poder pronunciar Piaf ou Aznavour com mais “exatidão”. Ele ignorava que Aznavour é a abreviação de um nome armênio, mas certamente achava que incorporava a própria francofonia ao pronunciá-lo. Assim acontece com muita gente, que imagina que tudo o que vem do “hexágono francês” é glaçado no luxo, na sofisticação, em valores classe-média-xic-viajante e por aí vai. Bom, turismo vive disso também, né?

Seja como for, quando o assunto é música, fica uma impressão de que se pula de alguns sucessos dos anos 1950 e 60 para os sussurros de Carla Bruni ou de Zaz (nada contra quem gosta, eu particularmente, passo). Apenas amores boêmios, a arte acima de tudo e a cartografia musical de bairros ou monumentos. Pronto, a coisa toda já estaria bem representada. Só que não, né? É bacana quebrar esse medalhão bem comportado, previsível; ficar na dúvida, descobrir coisas que circulavam (e circulam) mas não fazem parte do roteiro oficial das Alianças Francesas e afins.

Como Charles Aznavour cantando, em primeira pessoa, o dia a dia de um travesti que mora com a mãe (e uma gata, uma tartaruga, dois canários). Costura e ajeita o velho apartamento durante e o dia e à noite trabalha na buátchi, fazendo strip-tease. Gosta em segredo de um rapaz, hétero. E termina dizendo que esta é a sua natureza, que ninguém tem o direito de julgá-lo.

Ou Gilbert Bécaud, que cantou sobre uma acusação de roubo (de uma laranja na feira) feita contra um imigrante, inocente. As pessoas à sua volta fecham o cerco, gritam que ele é horrível, animalesco, tem sangue nas mãos, tem direitos demais e que já deveria estar há tempos com uma corda em volta do pescoço. Prestes a ser linchado, ele ainda tenta se defender.

Tem muito, muito mais de onde saíram essas, antigas e atuais, mas só por aí já se vê que a tal da música francesa tem um lado avesso, áspero, bem distante dos “prazeres de Amélie Poulain”. Mais obscuro, nem sempre lembrado em aulas ou dicas de viagem, mas que é uma marca forte daquele país também. 

Comme ils disent (Como eles dizem), 1972.

L'orange (A laranja), 1964.